Gilson Dipp - CNV - Comissão Nacional da Verdade
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A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014, com a entrega de seu Relatório Final. Esta cópia do portal da CNV é mantida pelo Centro de Referência Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional.

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Segunda, 18 de Maio de 2015 às 18:27

Gilson Dipp

 

03/09/2014 - A anistia e a verdade

 

Sustenta-se serem a tortura, o desaparecimento forçado, a ocultação de cadáver, e tantos outros, delitos imprescritíveis

Há 35 anos, a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, concedia anistia “a todos quantos cometeram crimes políticos ou conexos entre 02/09/1961 e 15/08/1979”. Para esse efeito, considerou conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados com motivação política”.

Por esta regra, fruto de um consenso entre a maioria parlamentar e o governo militar da época, a anistia alcançou todos os crimes, de qualquer natureza, relacionados com delitos políticos. Assim, por ela ficou assente que aqueles praticados pela autoridade policial ou militar na repressão política estariam imunes à jurisdição penal, ainda que entre esses crimes não existisse conexão técnica. No recente julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, suscitada pela OAB, o Supremo Tribunal Federal (STF) assentou que a lei de anistia era uma lei-medida, onde se teria fixado para o caso um conceito de conexão “sui generis, próprio ao momento histórico”. Esse conceito, de acordo com o STF, teria sido reafirmado pela Emenda Constitucional (EC) 26/1985 — que convocou a Assembleia Constituinte — e, assim, se incorporado à vindoura Constituição de 1988. Consolidou-se a ideia de que a anistia política do período militar impede também o exame das condutas repressivas, tenham ou não excedido os limites da conexão técnica.

Ocorre que, na Constituição de 1988, a anistia já havia perdido sua abrangência inicial, pois a lei 6.683/79 alcançava os delitos políticos e os conexos de qualquer natureza, mas, com a EC 26/1985, a anistia se referia apenas a crimes políticos e conexos, tendo desaparecido a expressão “de qualquer natureza”. O que se constitucionalizou em 5 de outubro de 1988 foi apenas a anistia relativa aos crimes políticos e os conexos. Daí, a concepção de conexão que o STF então adotara não valia mais e só poderia ser compreendida nos termos estritos da EC 26. A conexão é instituto de natureza processual penal e está circunscrita aos critérios do artigo 76 do Código de Processo Penal (CPP): a) quando as infrações tiverem sido praticadas ao mesmo tempo e lugar, por várias pessoas ou umas contra as outras; b) quando uma infração é praticada para facilitar ou ocultar outra; ou c) quando a prova de uma influir na de outra. Portanto, os ilícitos que não se podem acomodar nesses limites não são conexos, para os efeitos da EC 26/85. Então, a Constituição de 88 só teria recebido a anistia dos crimes políticos e os com eles conexos na forma do CPP. Isso quer dizer que, desde 1985, as graves violações de direitos humanos que não guardavam ligação com os delitos políticos por conexão da lei processual penal estavam fora do alcance da anistia da EC 26/85. Torturas, estupros, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáver e violências de toda a ordem, praticados pelos agentes do Estado em face de perseguidos políticos, não podem ser tecnicamente considerados conexos aos delitos políticos, já que não se verifica aí nenhuma das hipóteses do artigo 76 do CPP.

A Lei da Comissão Nacional da Verdade mandou observar a Lei de Anistia, por certo naquilo que não esteja em contradição com a lei nova, pois, ao atribuir-lhe a identificação dos autores das violações praticadas pelos agentes do Estado, a lei também concedeu-lhe o poder de revelação pública desses eventos. O significado disso é que não se pode obstar as autoridades competentes de adotarem as medidas legais correspondentes aos fatos apurados acaso caracterizados como crimes. Sustenta-se ainda serem a tortura, o desaparecimento forçado, a ocultação de cadáver, e tantos outros, delitos imprescritíveis, por se identificarem como crimes contra a humanidade, conforme aprovado pela Assembleia Geral da ONU na Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade.

Afastada a autoanistia fora da conexão técnica, é possível a instauração, quanto aos demais delitos, das medidas cabíveis. Saber se tais situações estão a salvo da prescrição é outra questão, mas não se pode deixar de reconhecer a sindicabilidade desses fatos, sem o obstáculo da anistia e sem obstáculo da prescrição. A existência de dois projetos de lei (PLS 237/2013 e PLC 573/2011) indica que o Legislativo vai enfrentar o tema a qualquer momento. A anistia da lei 6.683/79 não tem a amplitude usualmente repetida e não impede a promoção de medidas judiciais cabíveis no caso concreto. Ou, em outros termos, a questão da anistia e da verdade está em aberto.

Gilson Dipp é ministro do Superior Tribunal de Justiça e Manoel L. Volkmer de Castilho é desembargador aposentado



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